quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Num belo dia sem sol...

Num belo dia sem sol, ele resolveu sair de casa, sentar-se à beira da calçada e esperar que a vida passasse por ali... Ficou horas esperando, e nada. A vida não passava por ali, a vida estava passando dentro dele, e nem sequer percebeu. Ele se levantou, e resolveu fugir de si mesmo naquele dia peculiar. Estava insatisfeito com os rumos que havia tomado na vida. Queria mudar, queria desengessar seus hábitos, arrancar pela raiz as ervas daninhas que em seu coração haviam germinado como pragas.

Ele começou eliminando coisas, eram objetos guardados nos cômodos de sua casa, desde papéis inutilizados pelo tempo até fotografias de pessoas que já não tinham significado algum para ele. Mas ele gostava de tê-las por perto, como um "fantasma camarada". Depois, ele resolveu fazer uma faxina geral em si mesmo. Todas as mágoas se tornaram perdão e culminaram num telefonema de pedido de desculpas. Ele se sentia bem. Ele queria viver novamente, renascer como uma fênix das cinzas, pois já sentia o pó adentrando sua alma.

Então, foi a vez do desapego. A parte mais difícil da renúncia a uma vida medíocre é o desapego. Foi essa a conclusão a que chegou. Percebeu que todos se apegam demais a pessoas, coisas, memórias, caminhos, padrões, senso comum. Ele queria ser diferente, espontâneo, e quanto mais extravagante melhor. Por isso, começou a reavaliar cada amizade, o valor e o preço de cada indivíduo em sua vida, colocando-os numa balança. Eliminou futilidades e guardou as lembranças no baú do sótão em seu peito. Não queria guardar papéis, fotografias, nem presentes. Guardou apenas a recordação em sua mente. O resto, o fogo consumiu.

E uma espécie de vazio o tomou, seguido por um sentimento de satisfação por ter tanta força interior e por sentir-se liberto daquilo tudo que o prendia a convenções impostas. Agora, ele tem a noção de si mesmo, ele tem sentido e direção. Só não tem certeza ainda, talvez a encontre um dia no topo da escadaria, talvez tropece e role escada abaixo e a encontre lá embaixo, onde suas origens haviam ficado esquecidas.

Talvez tudo tenha sido em vão. Talvez esse belo dia sem sol não tenha sido tão útil quando ele pensa. Talvez, o amanhã o reserve a mesma monotonia indiscreta. Ele não tem certezas, mas gosta dessa incerteza. É ela que o permite liberdade de escolha e vontade própria. Ele decide agora para onde vai, mesmo na indecisão de seus passos, mesmo na imprevisibilidade de seu horizonte.

Mas foi um belo dia esse dia sem sol. À noite, ele refletiu bastante em frente ao seu reflexo no espelho. Viu alguém estranhamente diferente naquele momento, alguém sem forma definida por enquanto. Viu um brilho esquisito nos olhos, do tipo que aparece quando a pessoa tem algo muito importante e bonito a descobrir. Viu. Reviu. E ficou olhando para memorizar aquela cena. Ela seria sua motivação dali em diante: o próprio rosto sorridente, e a própria imagem, ascendendo à visão. 

Guilherme Ferreira Aniceto

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Calor do momento

- Foi no calor do momento! - Era o que dizia, era com que se desculpava, com que tentava fazer esquecer das palavras ditas - Eu nunca quis machucá-lo, eu nunca quis perdê-lo.

Ora, se não querias perder-me, por que deixou que assim fosse? Por várias noites, devido a tua falta de jeito com as palavras, me esqueci de amar a mim mesmo, verti lágrimas cada dia mais amargas. Não, eu não quis perder-te também, mas assim foi. Deve ser assim mesmo quando se trata de amor platônico. Um arrítmico batimento em troca de um peteleco no pé do ouvido, um tapa no lado direito do rosto e um beijo no esquerdo.

Não te esqueças de que o mundo dá voltas. Já deu tantas depois do ocorrido, que hoje já me encontrei comigo mesmo, e com alguém merecedor de amor, alguém que sabe o que dizer, e diz o que tem que ser dito.

Diga-se do dia em que eu vi um amigo se esfarelar, feito areia entre os dedos, e ouvi apenas um "eu te amo, e estou aqui contigo", que me apaziguou. Diga-se ainda do dia em que eu perdi o rumo porque eu não sabia fazer coisas que pensei saber, e apenas ouvi um "eu te amo, e te ensino". Amor mesmo é assim.

Amor mesmo é aquele que temos todo dia, o dia todo, por perto e por dentro. É uma espécie de amigo com privilégios. Um amigo que ouve os segredos e guarda, que confia e se faz confiar, que troca confidências e o mais importante, que dá carinho, afeto, faz cada momento um pedaço da eternidade no paraíso.

Guilherme Ferreira Aniceto

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Eis que surge o homem...

Hoje pela manhã, vi um bem-te-vi. Ele não cantava, mas tinha o corpo amarelo e a mesma faixa branca na cabeça como todos os outros. Ele não cantava... Ele estava imóvel, ele havia morrido. Passei a pensar no real sentido da existência, a partir disso. Todos morrem. Por conseguinte, todos vivem para morrerem bem. Mas isso só vale para seres humanos... Os animais vivem para viverem bem. Aquele pequeno corpo inerte no chão me ensinou mais do que qualquer corpo móvel deste mundo. Como é bela a natureza!


Mas eu fiquei pensando, meio que involuntariamente, se a família daquele ser não teria sofrido com sua partida.  Fiquei indagando a mim mesmo sobre o porquê de o deixarem ali, sozinho, para ser pisoteado por qualquer um, ou ser estraçalhado por cães, gatos, e afins. Fiquei pensando, pensando, pensando, até que cheguei a uma simples conclusão. A natureza, além de bela, é sábia. O bem-te-vi, que ali no chão estava, servirá de alimento aos pequenos seres da terra, e à própria terra. E a terra se tornará profícua, e nela crescerão plantas, verdes em meio ao cinza do asfalto.

Mas eis que surge o homem. A espécie homo sapiens, dita a mais esperta do planeta, não é tão sabia assim. Ainda nem encontrou uma forma de se sustentar sem destruir. Mas a natureza, essa mãe, é bela, sábia, e se regenera, desde que não alguém não interfira. Eis que surge o homem...


Guilherme Ferreira Aniceto

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O Machado

Eu estava dormindo, tranquilamente. Mas sabia o que me esperava pela manhã. Me revirei em minha cama, e durante toda a noite velei minha porta, pois sabia que a qualquer momento ela se abriria, e eu teria a derradeira surpresa, aquela da qual não poderia fugir, mesmo querendo...

Como já era de se esperar, acordei sem ter dormido mais de dez minutos ininterruptos. As olheiras saltavam de meus olhos. Estava apavorado. De repente, a porta se abre. E, havia um machado. Um terrível e assustador machado.

O machado, já enferrujado e sujo de sangue, trazia aos meus olhos um pouco do que me estava reservado. Me pegaram pelos pés, me arrastaram pelo recinto, e começaram a marcar as partes que de mim cortariam... Lentamente... E eu fui me apavorando mais a cada segundo.

Como podem pensar que eu não sentia aquele pavor? Ou pior, como podem saber que eu estava aterrorizado e, com prazer, machucar meu corpo com aquelas armas afiadas? Como podem essas pessoas me colocarem sobre suas mesas, ávidas por se alimentarem de minha alma?

Bem, minha alma ainda intacta aqui vos fala. Não me farão dissipar, embora meu corpo já não esteja mais completo. Eu não estava neste mundo para ser alimento de gente, nem estão meus irmãos. Merecíamos sermos livres também. Mas somos humildes e frágeis demais nas mãos humanas. Somos apenas irracionais, apenas escravos, pedaços de carne, bifes, filés, linguiças e hambúrgeres. Mas sentimos, sofremos calados toda essa humilhação servil de alimentar a quem nos maltrata.

Poderíamos ter uma vida toda pela frente, viver 20, 30 anos. Mas quando nascemos já temos atestado de óbito, com data marcada para nossa execução. Somos a grande maioria, mas estamos presos em campos de concentração, em regime de engorda. Somos Joões e Marias, na gaiola das bruxas, nos preparando para sermos devorados, impiedosamente, em casas feitas de doces. A vida aqui é amarga, é difícil demais, alguns de nós sucumbimos e morremos sem saber. Alguns, alienados, pensam que estão no mundo para servir realmente. Pena... Pena não, galinhas inteiras; galinhas, porcos, vacas, perus, peixes, e tantos outros irmãos.
Guilherme Ferreira Aniceto

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Dias desiguais

Era uma manhã como qualquer outra. Tinha o mesmo perfume de orvalho no ar, o mesmo som de passarinho cantando, a mesma claridade do sol adentrando as frestas das janelas. Mas algo não soava bem. Ele acordou, sentou-se na beira da cama, por alguns segundo hesitou em espreguiçar-se. Mas o fez. Uma leve dor nas costas o pegou desprevenido, e o obrigou a paralisar seu movimento de braços erguidos. Até que a dor se foi, e ele prosseguiu com seu ritual matutino do despertar.

Seguiu para a cozinha, sem perceber o quão vazia a casa estava, sua mulher havia saído, seus filhos não faziam a costumeira algazarra. Havia realmente algo estranho, que por seus olhos passou despercebido. Seguiram-se alguns minutos de total automatização de atos, da preparação do café ao momento de tomá-lo. Em seguida, o banho que igual a todos os outros durava cerca de 15 minutos sob a água quente que o convidava a permanecer ali, imóvel, tentando compreender o sentido da vida.

Depois do banho, partiu para o trabalho. Seus colegas fitavam-no atentos, como se algo nele os tivesse despertado interesse repentino, talvez uma mancha na camisa - pensou - ou as olheiras que insistiam - a noite não havia sido bem dormida. Mas passou o dia todo assim, sem tentar saber, sem querer saber. Foi um dia como qualquer outro, embora algo ainda estivesse estranho.

Depois do expediente, voltou para casa, e ainda não viu sua família. Até os cachorros que o recebiam aos pulos, ali não estavam. Nesse momento, ele começou a estranhar a si mesmo e a sua casa. Pensou: “Teria eu me esquecido de algo, seria o caso de telefonar à esposa, ao padre, à polícia?” Alguns segundos se perdeu em divagações, mas estava cansado demais. Deitado no sofá, adormeceu.

No dia seguinte, acordou. E para sua surpresa, estava de volta à cama, sua esposa ali deitada e seus filhos gargalhando na cozinha o apaziguaram. Fora apenas um sonho estranho. Dessa vez, ele havia acordado realmente, embora estivesse pensando: “Dessa vez é real, estou sonhando novamente ou estaria sonhando pela primeira vez?” Bem, isso ele descobriria mais tarde, quando dormisse novamente, e acordasse em algum lugar o qual não sabia ao certo.

Mas uma coisa era certa: estava aliviado em ter a esposa amada, a quem abraçou por longos minutos, ali ao lado. E mais aliviado em beijar seus filhos, brincar com seus cachorros, ter um dia normal no trabalho, e dormir novamente, como criança depois de um longo dia no parque de diversões. E assim foi, dormiu em paz. Na manhã seguinte, acordou, no sofá, sem a esposa, os filhos, os cachorros. Novamente, sem sentido...

Guilherme Ferreira Aniceto